O que fazer quando a vida não lhe concede a realização dos
desejos do coração? O que fazer quando sua posição social e o dinheiro são
sinônimos de sobrevivência? O que fazer quando os sentimentos precisam ser
recalcados em função de um sistema econômico? Você os recria dando asas à
imaginação. Você conta histórias recontando a vida não como ela é, mas com a
esperança de que pudesse ser um pouquinho diferente. Longe de ser um alter ego,
as personagens de Jane Austen são muito mais a expressão de um profundo desejo
de ter para si um almejado “felizes para sempre”.
“Como acaba? Ambas conseguem finais felizes
e triunfantes. Casamentos radiantes com homens muito ricos”.
“Becoming Jane”, de 2008 e dirigido por Julian Jarrold (no
Brasil, “Amor e inocência”), como o próprio título original nos permite
perceber, é um filme que busca nos mostrar como Jane, a sétima filha do
Reverendo George Austen, se tornando a escritora de Persuasão e Orgulho e Preconceito. No filme, a jovem Jane
interpretada por Anne Hathaway, com 20 anos, se apaixona pelo parente irlandês
Thomas Lefroy, vivido pelo ator James MacAvoy, e vive as desventuras do que é
uma jovem de pouca fortuna na sociedade agrária inglesa do final do século
XVIII.
O filme inglês tenta traduzir, através de uma aura de
romance, o universo juvenil da autora de clássicos ingleses como Mansfield Park e Emma por meio do mal fadado romance entre Jane e Tom. Quem conhece um pouco da biografia dessa
autora já sabe que esse amor não irá progredir a um casamento por motivos
financeiros. Essa situação é demonstrada em vários momentos do filme até seu
desfecho final em uma estalagem entre Hampshire e Londres. Não há qualquer evidência
histórica sobre essa fuga ter acontecido, mas no filme isso nos dá uma dimensão
muito aproximada das dificuldades de ser jovem e apaixonado na sociedade
vitoriana inglesa.
“Você perderá
tudo. Família. Posição. E a troco de quê? Uma vida de trabalho árduo por uma
miséria? Um filho por ano e sem nenhum modo de aliviar a carga? Não há bom
senso nisto.”
A história do filme me pareceu tão próxima de seus próprios romances
que me custou a acreditar em qualquer traço de verossimilhança da vida real de
Jane Austen. Mas o filme deixa entrever esboços de Orgulho e preconceito e Razão
e Sensibilidade, indicando que eles estariam sendo pensados durante o
período focado pelo filme. Tais livros de fato estavam sendo escritos entre
1795 e 1799, o que incluiria tanto o romance com Thomas, como uma proposta
feita pelo Reverendo Samuel Black anos depois. Não há referência histórica a
nenhuma proposta de um nobre aristocrata ou de um colega jurista de Thomas,
como aparece no filme.
Em sua curta vida, Jane escreveu seis romances. Ela morreu em
1817, aos 41 anos de uma doença arterial que provoca hipotensão e coma. Suas
histórias, portanto, revelam um cotidiano que ela existenciava, sendo uma
mulher de seu tempo, descrevendo as venturas e desventuras das jovens do
período. A preocupação com o casamento, um tema mais que recorrente na
literatura austeniana, é também o tema deste roteiro especifico livremente
inspirado em sua vida.
“É algo que
comecei em Londres. É a história de uma jovem mulher. De duas jovens mulheres.
Melhores que as circunstâncias. E de dois jovens cavalheiros que recebem muito
mais do que merecem, como acontece a muitos”.
Essa preocupação assume muitos vieses no curso da história,
sempre confrontado com a posição social, a sobrevivência financeira e o amor.
Casa-se por amor no século XIX? Era bem possível. Casa-se por amor no filme?
Certamente. A mãe casara por amor com um pobre reverendo que não lhe dera muito
além de filhas para se preocupar. Este amor ainda é presente no corrente da
história, assim como a penúria.
“Amor é
desejável. Dinheiro é absolutamente indispensável”.
Mas não só a mãe de Jane casou por amor, a mãe de Tom também
casou e a penúria dela é bem próxima da miséria na qual vivia a mãe de Fanny no
romance Mansfield Park. A conversa final entre Jane e Tom nos dá a dimensão de
que estes jovens já aprenderam com os arroubos dos pais a serem mais comedidos
em suas escolhas. O filme não deixa clara a escolha de Tom – mas tudo bem, o
filme é sobre Jane – mas a escolha de Jane é bem definida: não pode ser apenas
por dinheiro, mas também não pode ser apenas por amor.
“Meu doce,
doce amigo, vai afundar e eu afundarei com você”.
O filme é leve como uma comédia romântica de Sessão da Tarde,
mas traz reflexões importantes sobre o período que foca e mais uma vez nos leva
a pensar os textos de Jane Austen como fonte para os estudos de gênero do
século XIX. Sendo este um post de cinema talvez não convenha tratar tanto dessa
discussão. Mas na medida em que assistia ao filme lembrei-me de um bilhete
suicida que li certa vez em um jornal norte-riograndense de 1896. Uma
professora, solteira e sem família, se matou aos 32 anos por que era muito
triste e solitário ser mulher e pobre no século XIX. Ela tomou veneno de rato
na escola em que morava e dava aulas, enquanto suas poucas tuteladas dormiam. A
presença de Ann Radcliff, escritora gótica de sucesso no período, neste roteiro
indicava a Jane do filme e a nós espectadores que havia possibilidades, mas o
diálogo deixa claras as dificuldades sociais que Ann enfrentava por sua escolha
e a culpa que sentia por arrastar seu marido para uma vida reclusa e de
reputação escandalosa.
Andamos muito até aqui, conquistamos muito mais do que Jane
desejava, mas é sempre bom lembrarmos-nos de onde viemos, das coisas que essas
mulheres que nossa antecederam fizeram para conquistar o que temos. E este
filme faz isso: ajuda a pensar que essas mulheres somos todos nós que casamos
ou não cada vez mais por opção e menos por conveniência. Até onde me concerne o
mundo mudou. E para melhor. Bom filme. Vale a pena ver e ainda que o final
feliz de Jane não fosse o mesmo que o das suas personagens foi o final que ela
escolheu e isso já diz muita coisa sobre essa mulher admirável.