quarta-feira, 16 de setembro de 2015

CINEMA E LITERATURA



 Um livro me anima ou me desanima a ver sua tradução fílmica. Um filme me anima ou me desanima a ler o livro que o originou. É uma ação consciente. Mas nem sempre foi. Não conhecia A sereiazinha, de Andersen antes de assistir A pequena sereia, da Disney. A animação me animou a buscar o conto. Fiquei triste com o final inusitado do conto: esperava o mesmo “felizes para sempre” da animação. Eu tinha 12 anos e foi então que percebi que não eram apenas formato e linguagens diferentes, eram histórias diferentes. Quando o conto não tinha felizes para sempre, a Disney se encarregava de o colocar lá? E como fica a autoria quando o texto já é de domínio público? Pode-se fazer o que quiser?
Da minha adolescência para cá foram muitos livros e muitos filmes. Muitas histórias que chegam algumas vezes pelo livro e outras pelo filme, mas o hábito nunca mudou: se assisto uma tradução fílmica desperta meu interesse em conhecer a versão do livro, se lido um livro, ele se torna filme, assistirei a esta tradução. É quase um ritual. Muitas vezes é só pra ver outra história diferente daquela uma que eu conheci; quase como uma versão alternativa. Afinal, a esperança de um final feliz par ao clássico shakespeariano nunca morreu em mim (por que ele tinha que tomar aquele veneno, jovem sem paciência).  Somente o interesse despertado pelas cenas de Demi Moore em A letra escarlate é o suficiente para fazer o leitor regular buscar a obra Hawthorne? Mas até que ponto esta relação pode ajudar no entendimento de uma obra ou, em contrário, complicá-la mais ainda?
Este ensaio se organiza em três partes. Na primeira delas, uma resenha do livro de Jane Austen e uma análise de contexto será oferecido ao leitor com o intuito de reconhecer a história e sua autoria original. Num segundo momento traremos a sinopse do filme e reflexões teóricas sobre a relação entre cinema e literatura, incluindo outras relações filmo-literária buscando um diálogo teórico sobre o tema em foco. Na última parte nos permitiremos refletir sobre a questão posta no início deste post em uma análise relacional entre as duas obras Mansfield Park, publicada em 1814 e Mansfield Park, dirigida em 1999.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

TORNANDO-SE JANE AUSTEN, sobre o filme "Becoming Jane" ou "Amor e inocência"

O que fazer quando a vida não lhe concede a realização dos desejos do coração? O que fazer quando sua posição social e o dinheiro são sinônimos de sobrevivência? O que fazer quando os sentimentos precisam ser recalcados em função de um sistema econômico? Você os recria dando asas à imaginação. Você conta histórias recontando a vida não como ela é, mas com a esperança de que pudesse ser um pouquinho diferente. Longe de ser um alter ego, as personagens de Jane Austen são muito mais a expressão de um profundo desejo de ter para si um almejado “felizes para sempre”.
 “Como acaba? Ambas conseguem finais felizes e triunfantes. Casamentos radiantes com homens muito ricos”.
“Becoming Jane”, de 2008 e dirigido por Julian Jarrold (no Brasil, “Amor e inocência”), como o próprio título original nos permite perceber, é um filme que busca nos mostrar como Jane, a sétima filha do Reverendo George Austen, se tornando a escritora de Persuasão e Orgulho e Preconceito. No filme, a jovem Jane interpretada por Anne Hathaway, com 20 anos, se apaixona pelo parente irlandês Thomas Lefroy, vivido pelo ator James MacAvoy, e vive as desventuras do que é uma jovem de pouca fortuna na sociedade agrária inglesa do final do século XVIII.







O filme inglês tenta traduzir, através de uma aura de romance, o universo juvenil da autora de clássicos ingleses como Mansfield Park e Emma por meio do mal fadado romance entre Jane e Tom.  Quem conhece um pouco da biografia dessa autora já sabe que esse amor não irá progredir a um casamento por motivos financeiros. Essa situação é demonstrada em vários momentos do filme até seu desfecho final em uma estalagem entre Hampshire e Londres. Não há qualquer evidência histórica sobre essa fuga ter acontecido, mas no filme isso nos dá uma dimensão muito aproximada das dificuldades de ser jovem e apaixonado na sociedade vitoriana inglesa.
“Você perderá tudo. Família. Posição. E a troco de quê? Uma vida de trabalho árduo por uma miséria? Um filho por ano e sem nenhum modo de aliviar a carga? Não há bom senso nisto.”
A história do filme me pareceu tão próxima de seus próprios romances que me custou a acreditar em qualquer traço de verossimilhança da vida real de Jane Austen. Mas o filme deixa entrever esboços de Orgulho e preconceito e Razão e Sensibilidade, indicando que eles estariam sendo pensados durante o período focado pelo filme. Tais livros de fato estavam sendo escritos entre 1795 e 1799, o que incluiria tanto o romance com Thomas, como uma proposta feita pelo Reverendo Samuel Black anos depois. Não há referência histórica a nenhuma proposta de um nobre aristocrata ou de um colega jurista de Thomas, como aparece no filme.


Em sua curta vida, Jane escreveu seis romances. Ela morreu em 1817, aos 41 anos de uma doença arterial que provoca hipotensão e coma. Suas histórias, portanto, revelam um cotidiano que ela existenciava, sendo uma mulher de seu tempo, descrevendo as venturas e desventuras das jovens do período. A preocupação com o casamento, um tema mais que recorrente na literatura austeniana, é também o tema deste roteiro especifico livremente inspirado em sua vida.
“É algo que comecei em Londres. É a história de uma jovem mulher. De duas jovens mulheres. Melhores que as circunstâncias. E de dois jovens cavalheiros que recebem muito mais do que merecem, como acontece a muitos”.
Essa preocupação assume muitos vieses no curso da história, sempre confrontado com a posição social, a sobrevivência financeira e o amor. Casa-se por amor no século XIX? Era bem possível. Casa-se por amor no filme? Certamente. A mãe casara por amor com um pobre reverendo que não lhe dera muito além de filhas para se preocupar. Este amor ainda é presente no corrente da história, assim como a penúria.
“Amor é desejável. Dinheiro é absolutamente indispensável”.
Mas não só a mãe de Jane casou por amor, a mãe de Tom também casou e a penúria dela é bem próxima da miséria na qual vivia a mãe de Fanny no romance Mansfield Park. A conversa final entre Jane e Tom nos dá a dimensão de que estes jovens já aprenderam com os arroubos dos pais a serem mais comedidos em suas escolhas. O filme não deixa clara a escolha de Tom – mas tudo bem, o filme é sobre Jane – mas a escolha de Jane é bem definida: não pode ser apenas por dinheiro, mas também não pode ser apenas por amor.
“Meu doce, doce amigo, vai afundar e eu afundarei com você”.
O filme é leve como uma comédia romântica de Sessão da Tarde, mas traz reflexões importantes sobre o período que foca e mais uma vez nos leva a pensar os textos de Jane Austen como fonte para os estudos de gênero do século XIX. Sendo este um post de cinema talvez não convenha tratar tanto dessa discussão. Mas na medida em que assistia ao filme lembrei-me de um bilhete suicida que li certa vez em um jornal norte-riograndense de 1896. Uma professora, solteira e sem família, se matou aos 32 anos por que era muito triste e solitário ser mulher e pobre no século XIX. Ela tomou veneno de rato na escola em que morava e dava aulas, enquanto suas poucas tuteladas dormiam. A presença de Ann Radcliff, escritora gótica de sucesso no período, neste roteiro indicava a Jane do filme e a nós espectadores que havia possibilidades, mas o diálogo deixa claras as dificuldades sociais que Ann enfrentava por sua escolha e a culpa que sentia por arrastar seu marido para uma vida reclusa e de reputação escandalosa.



Andamos muito até aqui, conquistamos muito mais do que Jane desejava, mas é sempre bom lembrarmos-nos de onde viemos, das coisas que essas mulheres que nossa antecederam fizeram para conquistar o que temos. E este filme faz isso: ajuda a pensar que essas mulheres somos todos nós que casamos ou não cada vez mais por opção e menos por conveniência. Até onde me concerne o mundo mudou. E para melhor. Bom filme. Vale a pena ver e ainda que o final feliz de Jane não fosse o mesmo que o das suas personagens foi o final que ela escolheu e isso já diz muita coisa sobre essa mulher admirável.